Outro dia, Seu Chalita (Flavio Migliaccio) perdeu a paciência com Armane (Vladimir Brichta) porque o mulherengo atrapalhado queria um omelete “meio mole mas não cru” na parte de dentro. “Na Líbano é assim!”, vociferou Chalita, cansado de tanta frescura, em mais uma das grandes cenas do saudoso Migliaccio em Tapas & Beijos.
Produzido pela Globo entre 2011 e 2015, o seriado passou a ser reprisado pela emissora no horário nobre recentemente. Também em reprise no momento, a novela O Clone levou o canal Viva para o primeiro lugar de audiência na TV paga.
São dois exemplos bastante conhecidos de personagens e tramas que possuem um traço em comum – inspiração e referência na cultura libanesa.
Ainda contando os estragos da explosão em Beirute do dia 4 de agosto, que matou 180 pessoas, deixou seis mil feridos e aprofundou a crise social e política do país, o Líbano conta com uma colônia no Brasil mais numerosa do que a sua própria população.
Não à toa, a figura do imigrante libanês marca presença e tem papel de destaque por aqui desde a sua chegada há pouco mais de um século.
E tanto na ficção quanto na vida real, conquistaram um espaço de grande reconhecimento dentro da geleia geral que forma a arte e a cultura brasileira.
Existem grandes criadores, filhos ou descendentes diretos de libaneses, em diversas áreas e expressões.
Na literatura, por exemplo, temos Raduan Nassar (Um Copo de Cólera e Lavoura Arcaica) e Milton Hatoum (Relato de Um Certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte). Sem falar em Mansour Chalita, tradutor de toda a obra do autor libanês Khalil Gibran (1883-1931).
Na tevê, no teatro e no cinema, dezenas de atores e atrizes, como Malu Mader.
Estendendo ao jornalismo, aparece William Bonner, neto de libaneses por parte de mãe e pai. O fotógrafo Benjamin Abrahão (1890-1938), que se tornou célebre por ter feito registros de Virgulino Ferreira, o cangaceiro Lampião. E por aí vai.
Mas como investigar os traços libaneses na arte de Mato Grosso do Sul?
“A presença árabe, de maioria libanesa, é um dos principais elementos que fizeram de Campo Grande uma cidade multicultural”, escreveram os historiadores Marisa Bittar e Amarílio Fereira Jr. na edição de 6 de agosto de 2006 do Correio do Estado.
Ou seja, a própria identidade local traz em si a marca do povo libanês. Marisa retoma o assunto citando um ditado popular. “Campo Grande é uma ilha de turcos cercada de japoneses por todos os lados”, diz a historiadora.
“Isso resume as duas principais colônias estrangeiras que povoaram Campo Grande e fizeram o começo de sua história, que foram os árabes, popularmente chamados de turcos, e os japoneses, que estão de maneira até mais visível.”
A comunidade libanesa começou a chegar em Mato Grosso do Sul por Corumbá, afirma a historiadora, na passagem do século 19 para o 20. Chegavam em Corumbá e alguns foram para Aquidauana, Dourados também e depois Campo Grande.
“Na verdade temos que fazer justiça à história e à cultura libanesa, ou árabe de um modo geral; aquilo que essencialmente os define é a atividade comercial, os mascates. Constatamos, mais ou menos, umas cem famílias libanesas aqui. E com muita presença em Campo Grande, onde eu destacaria pelo menos quatro áreas – a política, a medicina, a música e a culinária”.
Se não aparece em muita quantidade, pondera Marisa, a música se consolida por qualidade e em representação.
“Porque o nosso principal artista da música sul-mato-grossense conhecido no Brasil todo e que nos representa de maneira inigualável, Almir Sater, é de origem libanesa. O seu pai era filho de libaneses. Eles vieram através do Paraguai e, do Paraguai, chegaram até aqui via Dourados.”
Descendente de sírios de Franca (SP), Marise Bittar é professora da Universidade Federal de São Carlos e morou em Campo Grande por 40 anos.
“Não poderia deixar de lembrar a presença libanesa nas comunicações através do grupo Zahran. Essa família começa esse empreendimento desde 1955, obtendo com muita dificuldade na época a concessão de um canal de TV, hoje TV Morena, e que expressa muito bem a presença libanesa na nossa cultura.”
Para a dançarina e atriz Anita Amizzo, a maior marca dos libaneses na cultura local seria a dança.
“É impressionante como a colônia árabe fez despertar nas pessoas a vontade de se direcionarem para esse lado”, afirma Anita, que descende de libaneses e cresceu sob forte influência dessa cultura.
Ela pratica dança árabe desde a infância, quando aprendeu com as tias, e estourou nacionalmente ao ser escalada para a novela O Clone (2002). Hoje faz parte do elenco de novelas da Record, como Gênesis, que está prestes a retomar as gravações.
“Sou muito grata a meu povo. Foi dali que nasceu toda a minha arte. Foi dali que nasceu a Anita Amizzo , a atriz, a artista. Vou carregar para sempre toda essa bagagem”.
Para o artista plástico Rafael Maldonado, professor da UFMS, a influência existe mas não seria tão nítida.
“Não percebo aspectos da cultura libanesa ou árabe como fator determinante numa produção artística específica, apesar de alguns artistas serem descendentes de famílias que vieram do Líbano e aqui se estabeleceram. É nítido que aqui as maiores presenças dessa cultura são a culinária, a música e a dança”.